O livro que também é uma chamada de atenção à sociedade atual
“Memórias Pós Cera de Abílio Abelha” remete para «uma sociedade extremamente individualista que desaprendeu a ouvir o outro» e da «falta de empatia entre as pessoas».
«Nasceu no Brasil em 1961. É poeta, jornalista, professor universitário e concluiu ainda um doutoramento em Ciências da Informação – Jornalismo e Estudos Mediáticos na Universidade Fernando Pessoa, no Porto. A poesia e a prosa de ficção são o seu hobby: escreve-as desde que escreve, pois é um “escravo” da palavra. Abílio Abelha é o seu primeiro personagem a sair da imaginação para entrar, literalmente, nas páginas de um conto».
É desta forma que nos é descrito Nilton Marlúcio de Arruda que, em dezembro do ano passado, apresentou o seu primeiro livro, “Memórias Pós Cera de Abílio Abelha”, nas instalações da Junta de Freguesia de Moreira.
Numa pequena entrevista ao MaiaHoje, Nilton Arruda fala sobre o seu gosto pela escrita e, claro, sobre o livro apresentado no concelho da Maia.
MaiaHoje: Tendo como hobby a poesia e a prosa de ficção, como surgiu a vontade de escrever esta obra?
Nilton Arruda: Tinha acabado de sair de um doutoramento (Ciências da Informação – Jornalismo e Estudos Mediáticos) e estava bem cansado da rigidez das normas, das citações obrigatórias, da pouca ou quase nenhuma liberdade para expor a minha ideia, do julgamento académico, etc. “Abílio Abelha”, então, foi uma oportunidade – e o desejo também, – de voltar a brincar com as palavras, abusar da liberdade criativa. Poemas, crônicas, contos sempre ficaram nas gavetas enquanto trabalhava duro (jornalismo e sala de aula). Livre durante o período sabático, resgatei tudo isso e fui tecendo a saga de “Abílio Abelha”. Foi, sem dúvida, um jeito de desopilar. Escrever sem nenhuma pretensão de acontecer. E, felizmente, aconteceu. Vem acontecendo muito bem. Agradeço à editora Cordel d’Prata pela oportunidade que me proporcionou, por acreditar num escritor estrangeiro, que escreve num idioma que não é tão igual ao de cá como pensamos a princípio.
MH.: Considera-se um «escravo da palavra». De que forma este livro é um espelho desse mesmo sentimento?
NA.: Aos 13 anos (1974) fui repreendido por uma professora secundarista ao ser apanhado em flagrante na sala de aula a reescrever as notícias a partir de fotografias recortadas de um jornal de verdade. O Brasil vivia na ocasião sob a censura imposta pelo golpe militar. Aquele susto fez-me perceber a importância da palavra – o jornalista como agente de mudança, que confirmei com clareza mais à frente, já profissional. O castigo da professora, no entanto, transformou-se depois numa visita à redação de um dos jornais da cidade. Foi quando me encantei de vez. “Não quero ser aquele que amarra as letrinhas ao chumbo e se queima. Quero escrever as letras que são impressas no jornal”, pensei comigo. Então, o exercício do jornalismo (nas redações ou como repórter de rua de TV) trouxe-me muitas – e emocionantes – histórias humanas. Daí a mania de guardar em forma de argumentos para um dia transformar em ficção. Esses dias chegaram já em Portugal e “Abílio Abelha” foi o personagem de estreia, enquanto outros estão a repousar nas minhas gavetas e memórias (Inácio Lessa, Adamastor, Narciso…).
MH.: A personagem principal, Abílio Abelha, passa 30 anos a achar que era surdo, até ao dia em que simplesmente se liberta da cera dos ouvidos e se dá conta de que ouve. De que forma esta vida muda no momento em que começa a ouvir?
NA.: Para minha surpresa, descobri pela escritora Ana Gabriela Nogueira, quando da participação dela na apresentação do meu livro, que Abílio é “aquele que nunca se vinga”. Curiosamente, essa é a atitude do meu “Abílio Abelha”. Ao retirar as ceras e resgatar as memórias do que se falava – pejorativamente – sobre ele, o protagonista se propõe e rever a sua vida e a se perguntar o que teria feito para que as pessoas (familiares, principalmente) o tratassem daquela forma. Ele é compreensivo e tenta a cada momento buscar esclarecimentos para resgatar as relações e consertar algumas maldades que foram praticadas enquanto esteve “surdo”. Trata-se, na verdade, de uma metáfora. “Abelha” ajuda a rever preconceitos, perdoa os inimigos, faz justiça a quem foi vítima das maldades, inclui as pessoas em tudo o que faz. Um jeito de “oferecer a outra face”, num exemplo de coragem e de compreensão ao outro que o ofendeu por tanto tempo.
MH.: Será este livro uma chamada de atenção à sociedade atual?
NA.: Claro! De forma intencional ou espontânea – sinceramente, não sei -, a estória remete a uma sociedade extremamente individualista que desaprendeu a ouvir o outro. Fala da falta de empatia entre as pessoas. Não é um livro militante ou panfletário, mas provoca uma reflexão sobre os boatos nossos de cada dia (Fake News nos jornais, interesses políticos, vantagens empresariais, intrigas familiares, etc.). Dos rituais e formalidades da “missa” no domingo (ou do “culto” ou da “reunião”) às fofocas veladas, o ser humano em seu vazio existencial alimenta uma desvalorização do próprio humano que traz em si. Um retrato da hipocrisia, talvez. “Eu vejo vozes, eu ouço fisionomias. Não são os meus verbos que estão trocados. É, pois, o meu atestado de que tudo é falso: tudo é hipercrisia”. “Sociedade do espetáculo” (Guy Debord) e/ou “Era do Vazio” (Gilles Lipovetsky) são evidências de uma humanidade desumana. Assim, numa figura metafórica, “Abílio Abelha” torna-se exceção numa regra cruel suportada pela mais valia e por muitos oportunismos.
MH.: Está previsto o lançamento de mais algum livro para breve?
NA.: Provavelmente em abril, teremos uma nova apresentação em Rio Tinto (onde moro), na Casa de Cultura Amália Rodrigues. Na programação, teremos poesia falada, música brasileira e portuguesa, debate sobre a saga de “Abílio Abelha”, sessão de autógrafos.