Com amigos assim…não é necessário inimigos
Assim diz o ditado popular.
O BE apresentou à Assembleia da República um projeto de lei que, como consta da respetiva exposição de motivos, propunha que fosse “possível o inquilino intimar o senhorio a regularizar a situação de existência de contrato de arrendamento, prevendo-se também que a injunção em matéria de arrendamento seja o meio processual expedito para, nos casos em que a intimação não funcionar, efetivar os contratos de arrendamento que, apesar de já existirem, não são reconhecidos”.
Vamos por partes.
O BE queria criar uma lei que possibilitasse ao arrendatário (prefiro esta terminologia) intimar o senhorio a regularizar a eventual situação de falta de um contrato de arrendamento escrito.
Mas então qualquer arrendatário que se depare com a inexistência de um contrato escrito (formalidade a que a lei obriga para o contrato em causa) não pode ou, acrescento, não deve contactar o senhorio no sentido de regularizar a situação?
Claro que sim.
A questão prende-se em saber se tem mecanismos para o efeito ou se precisa de mais uma lei. E as respostas não podem ser outras a não ser: sim, tem mecanismos (judiciais e extrajudiciais) e não, não precisa de mais uma lei.
Qualquer arrendatário que seja confrontado com tal situação pode, desde logo, interpelar o senhorio para proceder à elaboração do contrato, através de carta registada com aviso de receção. Esta é, aliás, a forma clássica e legalmente prevista para as comunicações entre as partes num contrato de arrendamento.
Além disso, o arrendatário tem ainda ao seu alcance outros meios caracterizados por uma formalidade acrescida como, por exemplo, a notificação avulsa. Trata-se de um requerimento que é apresentado no tribunal e que tem como finalidade notificar o senhorio por contacto pessoal (e já não por carta registada com aviso de receção), contacto este que pode ser realizado, nomeadamente, por um Agente de Execução.
Numa derradeira tentativa, caso pretenda, o arrendatário pode também apresentar a competente ação judicial para reconhecimento do seu direito de arrendatário.
Como se vê, mecanismos não faltam a quem, enquanto arrendatário, não tem um contrato de arrendamento escrito e quer obrigar o senhorio a proceder à elaboração do mesmo.
Mas, pergunto, para quê e porquê esta preocupação?
É que exigindo a lei a forma escrita para a celebração deste contrato, a sua inobservância originará a nulidade do contrato, com as legais consequências a tal inerentes. Porém, a preocupação pode existir relativamente a contratos de arrendamento mais antigos e que nunca chegaram a ser reduzidos a escrito. Mas, para estes, a recente alteração de 2019 veio a considerar que “na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses”. Assim, nestes casos será suficiente que o arrendatário prove que utiliza (o que quer que isso seja) o locado, que o faz sem que o senhorio se oponha e que paga a renda (deverá demonstrar o pagamento por um período, no mínimo, de seis meses).
Mas, acrescente-se, só terá que fazer esta demonstração quando tenha tal necessidade, ou seja, quando seja “incomodado” pelo senhorio.
O BE refere que o arrendatário que não tem um contrato sofre pressões do senhorio principalmente nas vésperas de um despejo. Esquece o BE que para existir despejo, tem que existir arrendamento. Logo, até podemos considerar que a tentativa de despejo anunciada ou iniciada pelo senhorio é, desde logo, a assunção da existência de um contrato de arrendamento.
Ou queria o BE referir-se a ações de restituição da posse e/ou da propriedade?
Bom, se era isso, devia ter dito…
Em qualquer dos casos, como se viu, e porque o arrendatário tem já ao seu alcance vários meios para comprovar a sua situação de arrendatário, desde logo através do comprovativo de pagamento da renda por um período de seis meses e da utilização do locado sem oposição do senhorio, não precisa e não lhe deve ser exigido que avance com um qualquer procedimento. Se a responsabilidade pela omissão do contrato escrito é do senhorio, então porquê prejudicar ainda mais o arrendatário, obrigando-o a agir e criando mais um procedimento quando ele já tem todos os meios necessários à sua disposição? Aliás, o BE queria criar dois procedimentos – intimação e a injunção – e ambos a cargo do arrendatário! Porquê complicar e onerar mais o arrendatário, o qual, afinal, não terá contribuído para tal omissão do senhorio?
Se isto é ser amigo dos arrendatários…