Dúvidas existem, Rorschach resolve
Podemos não compreender o porquê de três boletins numas eleições autárquicas, ou mesmo ter alguma dificuldade na distinção entre Conselho e Parlamento Europeu – mas sejamos pragmáticos, se há tema que qualquer um de nós domina são as variações genéticas e as anomalias cromossômicas.
O António e o Carlos ainda admitem dúvidas existenciais sobre a aptidão do lateral esquerdo do Benfica – mas quando falamos de uma pugilista argelina que o Comité Olímpico autorizou a sua participação no setor feminino – nesse exato momento, os três, untados que foram com a virtude de um qualquer fluído cósmico que os conduz para a luz, interrompem em uníssono e dizem que é obviamente um pugilista argelino! Aliás, tem algumas semelhanças com um argelino e até dá ares de pugilista, sim – mas nunca de uma mulher. Está na cara. Na cara dos três.
Ainda que superficial, esta não deixa de ser uma análise a ter em conta. É que o António e o Carlos são verdadeiros perdigueiros dos cromossomas. Os seus instintos não falham. Confiam no éter e na oportuna vocalização oferecida a uma Associação de Boxe russa – financiada pela Gazprom e banida pelo International Olympics Committee em 2023 – que apenas se lembrou do tema após uma atleta russa ter sido eliminada por Imane Khelif.
Se por um lado, as acusações da Associação de Boxe russa nunca foram comprovadas, por outro, os supostos testes (de género) nunca foram tornados públicos. Já os jornais internacionais – sem fact-cheking prévio algum – replicaram a notícia iniciada na Rússia.
Sim, tudo isto podia ser um problema de credibilidade, mas nunca para o António ou para o Carlos. São máquinas sofisticadas. Qualquer um deles é capaz de descobrir o género de uma pessoa que esteja dentro de um fato de astronauta. Em plutão.
O António que é exigente chegou a casa e do alto do seu sofá pesquisou uma imagem da atleta. Fez uma chamada e disse: “Ó Carlos, aquilo é um gajo pá!”. “Como? O pai trouxe a público a certidão de nascimento da filha?”. “Está bem, mas chama-se Imane Khelif e Khelif é nome de homem!”.
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De pouco ou nada serve dissuadir o António. É igualmente perda de tempo demover o Carlos. Na verdade, tenho dúvidas que exista resposta eficaz, argumento útil ou prova alguma que lhes exalte dúvida que seja. Tudo são certezas. Aliás, as dúvidas são as novas certezas.
A única e melhor resposta foi oferecida pela própria Imane Khelif. Em Paris subiu a um ringue para o seu último combate nos Jogos Olímpicos, derrotou Yang Liu e conquistou a medalha de ouro.
Ivo Filipe de Almeida
Advogado;
Deputado na Assembleia Municipal de Almada