Senha prioritária para a vida
Como qualquer tema que se arraste demais, existe uma tendência a se dualizar. O cansaço assombra os descontentes e de algum modo, perde-se o foco e a moderação.
Hoje quando se discute – e bem – sobre a proficiência do Serviço Nacional de Saúde [SNS], as posições mais ruidosas passam por aqueles que querem projetar dinheiro para cima da questão (proposta que já demonstrou não resolver o problema com os sucessivos investimentos record no SNS) ou por gerar uma cada vez maior aposta no setor privado – transferida do SNS – como forma de responder alguma da incapacidade de resposta.
Se por um lado, aumentou o número de pessoas titulares de seguros de saúde, por outro, sabemos que pelo menos 15% dos novos doentes que entram todos os anos no Instituto Oncológico Português de Lisboa (IPO) – foram “expulsos” do setor privado – seja por terem esgotado o seu plafond, ou ainda mais ilustrativo(!) – porque o seu quadro clínico se agravou consideravelmente – e apenas os hospitais públicos têm capacidade e conseguem responder às necessidades do paciente.
Rapidamente esta discussão é erroneamente galardoada como ideológica, sectarista e/ou tendenciosa. Mas não se iludam os interessados – não se coloca em causa o direito de um cidadão após recorrer ao setor privado ser tratado no público. (cf. al. a) do n.º 3 do art. 64.º da CRP). O problema é mesmo mais perverso.
Os inúmeros doentes oncológicos que aguardam a sua chamada para iniciarem os seus tratamentos no SNS, são então ultrapassados por doentes do setor privado que tento sido operados e/ou iniciado os seus tratamentos, mas ficaram sem capacidade financeira para os continuar ou o quadro clínico se agravou e são encaminhados para o SNS como prioritários. Esta ultrapassagem é uma espécie de senha prioritária para a vida humana.
(Os tratamentos oncológicos iniciados não podem ser interrompidos sob pena de graves retrocessos irreversíveis para a saúde do paciente).
Sejamos pragmáticos. O setor privado tem na sua génese uma abordagem financeira – de receita – que não existe no SNS. Não tem de existir.
O Grupo CUF em 2023 apresentou um resultado consolidado de 37.8M, ou seja, mais 9.5% de lucro que o registado em 2022. O Grupo Luz Saúde fechou o ano passado com lucros de 31,3M o que representa um aumento de 16,4% face ao período homólogo.
Quando o cidadão aflito e sem condições financeiras, deixa de ser útil quer para o hospital privado ou seguradoras, é “dispensado” por inutilidade.
No entanto, não estamos a refletir sobre uma nova marca de calçado. É com e sobre a vida humana que estamos a lidar. Em direito – o bem jurídico supremo.
Com esta situação levantam-se desde logo duas questões:
- De justiça social e discriminação no acesso – que se quer equitativo e universal – aos cuidados de saúde.
O tema não mais é o Grupo A ou B. É o Estado que está em falta por não assegurar o cumprimento desse direito fundamental a todos. E falha porque permite que (em razão de condições financeiras) quem recorre aos privados consiga um acesso prioritário em tratamentos públicos.
- Ainda uma abordagem jurídica – onde levanto reservas na possibilidade de uma entidade que presta serviços no setor da saúde poder iniciar um tratamento sem certeza de o concluir e/ou dispensar um cidadão por incapacidade financeira deste ou incapacidade técnica da própria entidade.
Urge regulamentação nesta matéria. Regulamentação no sentido de que os privados ou o social apenas se devem envolver (autonomamente) em procedimentos ou patologias que têm capacidade para as resolver se houver complicações – sob pena de não ser saúde que falamos, mas mero negócio com a vida.
O setor privado e social são relevantes e devem ser complementares. Mas essa complementaridade não existe quando se tornam tóxicos entre si. E tornam-se tóxicos quando um deles contribui para a injustiça, a desigualdade e o desequilíbrio no direito fundamental de acesso equitativo aos cuidados de saúde de todos os cidadãos.
A visão à distância é quase sempre o melhor barómetro de avaliação a aplicar. Tudo vai mal pelo reino da Dinamarca, menos quando a Dinamarca que fica a três anos-luz de nós, passa a ser destino de eleição de milhares de reformados estrangeiros pela qualidade e acesso à assistência médica pública.
O caminho deve ser feito sem se desistir ou fragilizar o SNS. É o SNS que acode sem olhar a quem. Sem perguntar de onde ou quantos zeros tem na conta. É o SNS.
Ivo Filipe de Almeida
Advogado;
Deputado na Assembleia Municipal de Almada