Têm os Maiatos um acesso à saúde de qualidade?
O estado de saúde dos Maiatos depende do acesso geral, universal e tendencialmente gratuito a cuidados de saúde, em particular no Serviço Nacional de Saúde (SNS), sendo, estas garantias constitucionais, cada vez mais, uma responsabilidade partilhada entre a administração local e central. Considerando os desafios do SNS, a transferência de competências para as autarquias na área dos cuidados de saúde primários e o anúncio de um novo hospital de um grupo privado no município da Maia, torna-se relevante analisar a qualidade deste acesso à saúde e considerar opções para o futuro.
O acesso à saúde é determinado por vários fatores, desde os geográficos de distribuição das unidades de saúde e de mobilidade dos utentes, passando pela disponibilidade dos profissionais em número suficiente para as necessidades da população até à qualidade destes serviços que garantam os melhores resultados dos cuidados prestados e sua confiança. Neste contexto, os tempos de espera e a despesa direta das famílias têm sido uns dos maiores desafios no SNS que condicionam este acesso e que diferentes investimentos e reformas têm tentando mitigar. Assim, este artigo foca-se no investimento político e iniciativa privada mais recentes do município da Maia.
A descentralização de competências para os municípios na área da saúde veio fortalecer as ações que as autarquias locais podem exercer, nomeadamente, em matéria de infraestruturas ao nível dos cuidados de saúde primários. Acoplada à adoção do Plano de Recuperação e Resiliência e seus investimentos na saúde, permitiu ao Executivo Municipal promover a requalificação de três unidades funcionais de centros de saúde e a previsão de construção de um parque da saúde, num valor orçado superior a nove milhões de euros, contando com a comparticipação via orçamento local. Apesar de não garantir o acesso direto (e.g. a autarquia não tem competências para alocação de médicos de família), estes investimentos apoiam a atração e fixação dos médicos para garantirem continuidade de cobertura atual, praticamente, de 100%, e melhorarem a perceção e qualidade, na maior parte dos maiatos, dos serviços prestados.
Por outro lado, o acesso aos cuidados hospitalares e respetivas especialidades médicas pelos Maiatos no SNS é, por base de residência, destinado ao Centro Hospitalar Universitário do São João. Apesar da qualidade deste hospital, observam-se barreiras importantes no cumprimento dos tempos médios de resposta garantida. Embora seja um problema multifatorial, é maioritariamente alavancado pela incapacidade de fixar profissionais de saúde no SNS, comparando com o setor privado. Como a elasticidade destes profissionais é muito baixa, o desinvestimento no SNS aumentou a sua saída e a concorrência do setor privado. Por sua vez, os utentes passaram a ter de recorrer a serviços privados, traduzindo-se na despesa direta das famílias (aproximadamente 30% da despesa total em saúde) que já é uma das mais elevadas da Europa (figura 1).
Figura 1. Pagamentos Diretos das Famílias (% da despesa corrente em saúde; 2021 ou ano mais recente)
Fonte: Relatório “Despesas diretas das famílias no sistema de saúde português”. Observatório Da Despesa em Saúde, julho 2023. Nova School of Business and Economics.
As consequências são, por um lado, um aumento das desigualdades no acesso entre os que têm de aguardar por uma resposta no SNS por não terem capacidade financeira e, por outro lado, entre os que têm um maior risco de empobrecimento pela fatia dos seus rendimentos que tem de ser alocada a pagamentos diretos no acesso ao setor privado. Assim, projetos que promovam a sangria de mais profissionais de saúde do SNS irão acentuar estas consequências, o que me leva ao mais recente anúncio da abertura de um novo hospital pelo grupo Trofa Saúde na Maia.
Em termos económicos, o investimento realizado no município, os postos de trabalho criados (em parte) e os retornos fiscais da sua atividade são benefícios óbvios que devem continuar a guiar a iniciativa empresarial na Maia. No entanto, em termos de acesso à saúde não é óbvio que a médio prazo se traduza num benefício equitativo para todos os Maiatos. Sem convenções e comparticipações públicas, considerando as desigualdades económicas existentes no município, haverá cidadãos que não terão capacidade de suportar estas despesas do seu próprio bolso. Por outro lado, não descurando o direito e iniciativa do grupo privado responder a estímulos de mercado, é importante reconhecer que, empiricamente, aumentará as chances de diminuir o número de médicos (ou, pelo menos, horas alocadas) no SNS, contribuindo para uma menor resposta universal e maior peso na despesa individual. Assim, o Executivo Municipal deve, seriamente, considerar a possibilidade de celebrar diretamente e pressionar o Governo a celebrar, indiretamente, convenções de oferta de serviços, pelo menos, para determinados grupos populacionais com maiores riscos.
Enquanto tal não for realizado, não se deve considerar imediatamente positivo algo que pode trazer maior risco para as despesas das famílias e ter um impacto desigual na saúde do município. Se tal é feito pela vertente económica, compreende-se, mas é, moralmente, injusto. Se é justificado com maior capacidade para cobrir as necessidades da população, é intelectualmente desonesto e potencialmente danoso para todos os munícipes e, de forma desproporcional, para os que têm maior privação sócio- económica.
João Paulo Magalhães
Médico e doutorando em políticas públicas